COTIDIANO
O ano de 2020 nos mostra um mundo novo. Um mundo mais cheio de dentro, que de fora. Uma nova perspectiva. Uma poesia mais pelo reverso, que pelo verso. Chegou, como quem chega um desconhecido familiar sem cerimônia, já puxando a cadeira para sentar-se e que nos atravessa. De repente, nossas casas transformaram-se em ruas, bairros, cidades, nosso mundo; uma espécie de metáfora real. Nós, o único horizonte possível. Como uma viagem às avessas, ficar era o ponto de partida. Em pleno curso e com roteiro improvisado, esta viagem exige coragem e passaporte especial. Nesta viagem, passageiro e destino se (con)fundem. Somos nós, entre chegadas e partidas de nós mesmos, chamados a traçarmos o melhor caminho para nossas casas, nossos templos, nossos corpos. Uma viagem ao centro de nós mesmos. Sendo passageiro e destino precisamos pilotar cada manobra, cada embarque e desembarque atentos com a tripulação, recalcular rotas entre atalhos e retalhos. Conhecimentos cartesianos de um coração que pulsa avistando algo pela primeira vez ou redescobrindo o que sempre esteve ali. É sobre o extraordinário passeio pelo cotidiano. Da construção de grandezas a partir de miudezas diárias. Dos sentimentos coados por uma intimidade que agora se revela globalmente. Do espetáculo e imperceptível gesto, quase irrisório e despretensioso, de abrirmos as janelas. Dos corriqueiros e ínfimos goles de ar que nos mantém vivos e que sopra como brisa pelo dia e que nos engrandece. Oceanos e mares deram lugares aos cantinhos quase esquecidos, por onde devemos navegar. O porto bate à porta e é preciso ancorar para o mundo novo conquistar. Novo mundo à vista!
É esta a inspiração para Cotidiano, uma poesia para estes dias.
Hoje quero saber
das coisas pequenas
das mais ínfimas partes da casa
do canto esquecido
dos irrisórios detalhes
do entalhe.
Do irrelevante
Instante. Estante de
poeirinha do vento
que não sopra mais. Parou.
Do papel anotado e
já dobrado e
que nem pro bolso foi carregado.
Lavado. Sem cheiro, sem sabor.
Sem rastro, nada de astros.
Dos átomos.
Dos minúsculos, das moléculas
inalcançáveis formas de ser, hoje.
Do que já foi queimado. Sem perfume
nem cardume, água que desce do cume.
Do amarelado. Do cortado. Do quebrado.
Miudeza espalhada
pelo piso que me descalça
pela terra que dança
eu, você ou criança
indiferente. Semente invisível
que brota sem aparência
sem cadência, sem chama
inflama e arde e
que nesta cotidiana tarde
me chama.
Luh Torres
@instantedapalavra