O PODER DO BATOM
Quero contar sobre o que aprendi com Dona Mariana, uma senhorinha de 76 anos de idade, mãe de um amigo querido.
Entre outras coisas, Dona Mariana viveu a amargura de ser trocada, ainda nova e com filhos pequenos, pela " arrasa quarteirão" do bairro da pequena cidade do interior paulista em que vive até hoje. Para ela parece que foi ontem : o tempo não apagou a dor do abandono, dor essa que não diminuiu sua força de viver, de criar seus filhos com carinho, amor e atenção, apesar do pulso forte.
Dona Mariana acorda diariamente às 6 horas da manhã. Faz parte de sua rotina uma boa espreguiçada ainda deitada, enquanto pensa nos deveres reservados para o dia .Meu quiropraxista, aquele que me puxa, estica, estala e me coloca retinha, sempre diz que a gente tem que aprender observando os gatos. Princípio do alongamento. Bem , ela pula da cama, toma banho gostoso, escova os dentes, penteia e fixa, com a ajuda do spray - " sem cheiro, por favor, que eu não gosto" - os cabelos que ela perpetua num loiro cendre e - preste atenção, menina !! - dá cor aos lábios com a ajuda de seu fiel companheiro : o batom. Dona Mariana diz que uma mulher nunca deve sair de casa despenteada, desarrumada e sem um batonzinho nos lábios. Seu Zeca, o dono da padaria onde compra pães fresquinhos , que o diga : ele comenta com todo mundo do prazer que tem de receber o "Bom Dia" de Dona Mariana com a boquinha pintada. O quitandeiro, Seu João, confirma as palavas de Seu Zeca para quem duvidar. Sim, ele enfatiza que ela, em todos esses anos ( mais de 50) nunca apareceu para comprar assim, de qualquer jeito. Já pedi uma fotografia de Dona Mariana para colocar no meu espelho, assim como um lembrete de que chova ou faça sol, estando alegre ou triste, muito apaixonada por mim (sempre!), por outro, pela vida, pelo trabalho, ou menos, com contas pagas ou a pagar, nunca deixar de passar um batom pois, com toda a certeza vou me sentir mais animada e armada para o que der e vier.
Ah! ia esquecendo de contar o que aconteceu há poucos meses :
Dona Mariana, com sua boquinha pintada, tomava café com o pão quentinho do Seu Zeca, quando ouviu alguém chamá-la no portão. Calmamente ela se levantou da mesa para ver quem batia ainda tão cedo. Abriu o portão e lá estava o ex-marido, aquele que foi viver com a "arrasa quarteirão". Estava bem caído, faltando alguns dentes naquela boca chupada, indefinida, diferente do homem-bolero ( o conquistador) que tinha ido embora havia muitos anos.Queria voltar, disse que se arrependia do que havia feito, pediu perdão. Dona Mariana esperou todos esses anos para, armada com o seu batom, disparar o tiro de misericórdia.Disse com um vitorioso sorriso carmim: "Esperei 37 anos por esse momento. Não tem lugar nessa casa para você. Essa casa é minha , dos meus filhos e dos meus netos.E não volte mais aqui." Dona Mariana fechou o portão, entrou em casa e continuou a tomar o seu café da manhã.Ela estava arrumada, penteada, perfumada e...livre. A simpática senhora deu um suspiro de vitória, correu para o espelho, retocou o batom e deu um sorriso que refletiu o seu grito de independência.
E viva o batom !
PS- Assim que nos livrarmos desse virus que assombra o mundo, voltemos ao batom publicamente. Agora, só em casa mesmo !